Documentário da BBC acompanhou crianças, entre elas, um menino de 11 anos que trabalhou como voluntário no hospital Al-Aqsa, por nove meses. Zakaria vive sozinho no hospital Al-Aqsa, onde auxilia os paramédicos a socorrerem os feridos.
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Esse acompanhamento foi feito antes do cessar-fogo entre Hamas e Israel, iniciado em 19 de janeiro.
Zakaria tem 11 anos e mora em Gaza. Ele acredita ter visto milhares de corpos desde o início da guerra.
Enquanto outras crianças da sua idade estariam na escola, Zakaria atua como voluntário em um dos poucos hospitais ainda em funcionamento em Gaza – o Al-Aqsa.
À medida que ambulâncias chegam sem parar ao hospital em Deir al-Balah, trazendo vítimas da guerra entre Israel e o Hamas, Zakaria abre caminho em meio à multidão para levar os recém-chegados rapidamente para o atendimento.
Poucos instantes depois, ele corre pelos corredores empurrando uma maca e, mais tarde, carrega uma criança pequena até a sala de emergência.
Desde o início do conflito, vários de seus amigos de escola foram mortos. Passar tanto tempo no hospital faz com que Zakaria testemunhe cenas chocantes. Ele conta que, após um ataque israelense, viu um menino à sua frente ser consumido pelo fogo e morrer queimado.
“Devo ter visto pelo menos 5 mil corpos. Vi com meus próprios olhos”, ele conta ao nosso cinegrafista.
Antes da guerra, Abdullah estudava na escola britânica de Gaza e, apesar das circunstâncias, faz o possível para continuar seus estudos
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Zakaria é uma das crianças e jovens que acompanhamos durante nove meses para o documentário da BBC ‘Gaza: How to Survive a Warzone’ (em português, ‘Gaza: Como Sobreviver a uma Zona de Guerra’).
Meu colega Yousef Hammash e eu co-dirigimos o filme de Londres, já que, desde o início da guerra, há 16 meses, Israel não permitiu a entrada de jornalistas internacionais na Faixa de Gaza para reportagens independentes.
Para coletar as imagens e entrevistas, contamos com dois cinegrafistas que vivem em Gaza – Amjad Al Fayoumi e Ibrahim Abu Ishaiba – mantendo contato regular com eles por aplicativos de mensagens, chamadas pela internet e redes móveis.
Yousef e eu queríamos mostrar como é o dia a dia das pessoas em Gaza enquanto tentam sobreviver aos horrores desse conflito. Concluímos as filmagens poucas semanas atrás, no dia em que o cessar-fogo atual começou.
Nos concentramos em três crianças e uma jovem mãe com um recém-nascido, pois eles são os inocentes nesta guerra, que teve uma pausa instável em 19 de janeiro, quando entrou em vigor um acordo entre Hamas e Israel para a libertação de reféns.
Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas, mais de 48.200 pessoas foram mortas durante a ofensiva israelense. A ação militar foi uma resposta aos ataques do Hamas no sul de Israel, em 7 de outubro de 2023, que deixaram cerca de 1.200 mortos e resultaram no sequestro de 251 pessoas.
Grande parte das filmagens ocorreu no sul e no centro de Gaza, em uma área designada pelo exército israelense como “zona humanitária”, onde os palestinos foram instruídos a buscar segurança.
No entanto, segundo uma análise da BBC Verify, essa mesma área foi atingida quase 100 vezes entre maio de 2024 e janeiro deste ano. As Forças de Defesa de Israel afirmam que os ataques tinham como alvo combatentes do Hamas que operavam na região.
Queríamos entender como as crianças conseguiam comida, decidiam onde dormir e como se ocupavam enquanto tentavam sobreviver.
Abdullah, de 13 anos, é quem narra o documentário. Ele fala inglês fluentemente, já que estudava na escola britânica de Gaza antes da guerra, e faz o possível para continuar sua educação.
Renad, de 10 anos, apresenta um programa de culinária no TikTok com a ajuda da irmã mais velha. Apesar da escassez de ingredientes por causa da guerra, elas preparam diversos pratos e já acumularam mais de um milhão de seguidores.
Também acompanhamos Rana, de 24 anos, que deu à luz uma menina prematura. Deslocada três vezes, ela vive perto de um hospital com seus dois filhos e seus pais.
O documentário também mostra como médicos lutavam para manter pessoas vivas no hospital Al-Aqsa, descrito em janeiro de 2024 por médicos britânicos como o único hospital ainda operante no centro de Gaza.
Foi lá que encontramos Zakaria.
Rana deu à luz sua filha prematuramente e agora vive em uma tenda, após ter sido deslocada três vezes
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Todos no hospital conhecem Zakaria. Ele ainda é apenas uma criança e não tem formação médica, mas está sempre por perto, à espera de uma oportunidade para ajudar alguém – na esperança de receber um pouco de comida ou algum dinheiro em troca.
Às vezes, carrega equipamentos para jornalistas locais; em outras, ajuda a transportar macas com feridos ou moribundos.
Nos momentos de calma, limpa o sangue e a sujeira das ambulâncias.
Sem escola para frequentar, ele é o único da família que consegue algum dinheiro. Mas não mora com eles, pois, segundo ele, há pouca comida e água em casa.
Em vez disso, vive sozinho no hospital e dorme onde consegue: uma noite na sala de tomografia, outra na tenda dos jornalistas ou até no fundo de uma ambulância.
Muitas vezes, dormiu com fome.
Por mais que tentem, os funcionários do hospital não conseguem afastá-lo do caos do atendimento às vítimas.
Zakaria idolatra os paramédicos e quer ser reconhecido como parte da equipe. Um deles, Said, o acolhe. Mas sempre que tenta tratá-lo como criança, Zakaria se irrita.
A equipe do hospital Al-Aqsa fez um uniforme médico em miniatura para Zakaria usar enquanto ajuda no hospital
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Como reconhecimento por seus esforços, fazem para ele um uniforme azul – do qual ele se orgulha imensamente.
Said tenta garantir que o menino ainda tenha algum resquício de infância e, no documentário, acompanhamos os dois em uma ida à praia.
Sentado à sombra de uma árvore, Zakaria saboreia o almoço que Said comprou. O shawarma, segundo ele, está perfeito. Said brinca que é a única hora em que o menino fica em silêncio.
Mas ele também se preocupa. Zakaria já viu tanta morte e destruição que talvez nunca mais consiga se encaixar entre crianças de sua idade.
O próprio Zakaria já olha além da infância.
“Quero ser paramédico”, diz. “Mas primeiro, preciso sair daqui.”
*Relato a George Sandeman